22/08/2023
Cotidiano

Kundun ganha “carta de alforria”

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Guarapuava – A Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê – Quilombo Paiol de Telha começa 2010 com um grande desafio.
A partir de agora o Kundun deixa de ser coordenado pelo percussionista Orlando Silva e passa a ser administrado pelos próprios integrantes.
A decisão foi tomada por Orlando Silva e era prevista desde o início dos trabalhos no quilombo.
“O Kundun nasceu do projeto Bolongo – O Fogo da Sabedoria que é uma analogia com um ritual de iniciação feito numa das nações nigerianas. No quilombo a iniciação teve como alvo a cidadania, a auto-estima, a história de cada integrante do Kundun, o entendimento e o entrosamento de cada família no trabalho proposto, a inclusão em cursos superiores, o acesso ao conhecimento, ajuda de custo mensal e a construção do barracão cultural. Tudo isso foi conquistado. Hoje todos os integrantes do Kundun ganham uma ajuda de custo mensal de R$ 30,00 viabilizado pelo sub-programa Diálogos Culturais, da Secretaria de Estado da Ciência Tecnologia e Ensino Superior, em desenvolvimento até 2011”, além de dois estagiários no programa federal Telecentro”, enumerou Orlando. “Me sinto como dever cumprido, pois não tenho mais nada para fazer no quilombo. Se ficasse lá não passaria de um coreógrafo e esse não era o objetivo do nosso projeto. As nossas metas foram conquistadas com muito sacrifício e valeu a pena”, diz.
Segundo Orlando, hoje seis bailarinos do Kundun estão na faculdade, outras três pessoas da comunidade, incluindo uma mãe, também foram motivadas, retornaram aos bancos escolares e estão cursando o ensino superior. “Os pais entenderam o nosso trabalho e estão inseridos. O maior exemplo é que seis mulheres (três que não tem filhos no Kundun) estão dançando no show atual. São mulheres que trabalham na roça e que jamais imaginaram pisar num palco”, observa.
São elas que vão tomar conta da parte administrativa do Kundun e do barracão cultural.
“Vamos desenvolver cursos, artesanato e outras atividades que geram renda. Uma das mulheres (Tereza) fez o curso de corte e costura e outras duas estão interessadas com a intenção de criar a grife do Kundun e fazer confecções diversas. Vamos continuar recebendo professores, estudantes de várias faculdades e universidades que vem em busca do trabalho e do conhecimento do Kundun”, disse Ana Kinileh
Alves da Cruz.
A parte artística do grupo será coordenada pelos próprios membros. “Nos três anos de trabalho formamos estilistas, coreógrafos, bailarinos, percussionistas, compositores, intérpretes”, diz Orlando Silva.
A preparação para essa nova fase do Kundun já começou na montagem do show Encanto das Três Raças. “Foram eles próprios que criaram coreografias, que fizeram o figurino, os arranjos, as letras de algumas músicas e isso foi proposital. Foi uma forma de mostrar que eles são capazes e que podem tocar o grupo sem uma tutela”, aposta o percussionista.
Num primeiro momento a reação dessa nova proposta foi de insegurança. “É difícil imaginar que não teremos o Korin (aquele que ensina) todos os finais de semana e feriados aqui com a gente, mas depois entendemos que esse é um desafio que ele nos colocou e que vamos cumprir. Nós, mulheres do Paiol, vamos levar esse trabalho em frente, vamos estar junto com nossos filhos nessa nova empreitada”, afirmou Ana Kinileh Alves da Cruz.

CARTA DE ALFORRIA
“O que o Kundun precisa entender é que dentro do projeto se chegou à fase da maturidade e que eles estão aptos a seguirem enquanto grupo. De alguma forma o que estamos fazendo é dando uma carta de alforria”, disse Orlando Silva.
E foi justamente isso que aconteceu na festa dedicada à Iansã (orixá que simboliza os ventos, as tempestades e que é a protetora do Kundun). Realizada no dia 4 de dezembro de 2009 no barracão cultural do grupo, cada integrante recebeu uma carta de alforria feita pelo publicitário Péricles Kramer (sub-programa Diálogos Culturais).
“Isso não significa que o Kundun era escravo, mas se trata de uma simbologia. Mas afinal, não somos escravos da liberdade, do desejo de vencer, da busca por coisas materiais e também espirituais? Eu me sentia escravo da ânsia de mostrar o meu potencial, a minha metodologia de ensino; escravo do desejo de mostrar ao Brasil o talento daquelas crianças e adolescentes que não tem acesso a nenhum tipo de incentivo oficial no município. Eles eram escravos dos meus ensinamentos. Então, dessa forma, nós recebemos a nossa carta de alforria, sim”, diz o percussionista que vai continuar apoiando o Kundun em tudo o que for necessário. “No novo show quero estar na primeira fila aplaudindo o Kundun e sei que isso vai acontecer porque continuo apostando no potencial de todos eles”, afirma.
Orlando Silva vai continuar coordenando o sub-programa Diálogos Culturais (Universidade sem Fronteiras), da SETI, proposto pela Fundação Rureco e que entra no segundo e último ano de execução. Novos projetos estão sendo pesquisados para que o Kundun tenha sustentação financeira e possa continuar o trabalho.
“O Kundun hoje é referência nacional quando se trata de resgate da cultura negra e esse trabalho não vai ser perdido. Pelo contrário, vamos em busca de novas parcerias, de novos projetos e sabemos que a Cris (Cristina Esteche) também vai continuar fazendo a sua parte, agora como apoio. Vamos mostrar que o Bolongo (Fogo da Sabedoria) teve êxito e que nós estamos com maturidade suficiente para seguir o nosso próprio caminho”, afirmou o bailarino Leonardo Kunta Camargo Soares da Cruz.
“O Korin vai continuar sendo o nosso grande pai cultural. Muito do que sabemos foi ele quem nos ensinou. Ele nos ensinou a sermos artistas, mas acima de tudo, pessoas humanas, cidadãos. Ele apostou num talento que nem nós sabíamos que tínhamos e nos deu uma nova visão de mundo, sem limites, bastando apenas acreditar e ir atrás. E se essa carta de alforria, num primeiro momento nos surpreendeu, nos fez chorar, agora nos motiva a mostrar esse novo potencial. Eu tive medo de perder a Anaxilê (nome cultural) e de ser apenas mais uma. Mas o Korin me fez entender que a Anaxilê traduz o meu talento, o meu potencial, assim como o nome cultural de todos os integrantes do Kundun. E isso é uma coisa que se ganha apenas uma vez para nunca mais perder”, desabafa Isabela Anaxilê Camargo Soares da Cruz, que além de bailarina agora passa a ser a vocalista do grupo.
Orlando Silva também vai enfrentar novos desafios. “Além do apoio que vamos continuar dando ao Kundun vou aceitar convites feitos em Curitiba. Ainda estamos em fase de planejamento, mas devo iniciar um trabalho semelhante numa das favelas em Curitiba. Quero mostrar que a metodologia utilizada no quilombo também pode dar certo na área urbana. Basta descobrir, acreditar e respeitar esses talentos”, diz.

Cristina Esteche

Jornalista

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